Publicado em 4 agosto 2020 | Atualizado em 5 agosto 2020

A farmacovigilância surgiu como resposta à grande comoção social, depois que milhares de crianças nasceram com má-formação, decorrente da exposição intrauterina a um medicamento utilizado para tratar náuseas, no início dos anos 1960.

Assim, a farmacovigilância foi definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) enquanto ciência e conjunto de atividades relacionadas à detecção, avaliação, compreensão e prevenção de possíveis problemas relacionados a medicamentos.

Em 1968, iniciou-se o Programa Internacional de Monitorização de Medicamentos da OMS, do qual o Programa Nacional de Farmacovigilância da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é membro efetivo.

Com o tempo, o campo de ação da farmacovigilância foi ampliado, passando a incluir produtos fitoterápicos, sangue e hemoderivados, produtos biológicos, vacinas e demais produtos para a saúde.

É papel da farmacovigilância acompanhar as reações adversas, queixas técnicas, erros e interações medicamentosas relacionadas a todos esses itens, mas o uso racional de medicamentos ainda constitui seu alvo principal. Isso é justificável por ser o insumo mais utilizado no cuidado à saúde e porque o conhecimento gerado pelas ações de farmacovigilância proporciona maior segurança, prevenindo complicações e reduzindo gastos decorrentes delas.

Trataremos a seguir do monitoramento de reações adversas a medicamentos, tarefa que pode diminuir a morbidade e mortalidade relacionada ao uso de medicamentos, além de inspirar confiança e credibilidade nos serviços prestados.

Reação Adversa a Medicamento

A Reação Adversa a Medicamento (RAM) pode ser definida qualquer resposta prejudicial e não intencional provocada por um medicamento, quando utilizado nas doses normalmente adotadas para profilaxia, diagnóstico ou tratamento. As RAM podem ser classificadas de várias formas, mas de modo geral, elas podem ser agrupadas em previsíveis e imprevisíveis.

As reações adversas a medicamentos previsíveis são decorrentes do próprio mecanismo de ação do fármaco no organismo. São reações relativamente comuns e de gravidade baixa ou moderada. Geralmente resultam da mera exacerbação do efeito da droga e são facilmente revertidas com a suspensão do tratamento ou ajuste da dose.

As reações imprevisíveis merecem atenção maior pois, apesar de raras, podem ser bem mais graves. São reações que independem da dose ou duração do tratamento e podem surgir de forma repentina, requerendo atenção médica. Incluem os casos de hipersensibilidade e intolerância, por exemplo.

Como reconhecer uma Reação Adversa a Medicamentos?

O fato é que qualquer medicamento pode desencadear reações adversas. Algumas dessas reações podem ser bastante raras e, por isso, passam despercebidas durante as etapas de pesquisa que antecedem o lançamento do medicamento no mercado. Certas reações só serão percebidas quando do uso em larga escala, na fase pós comercialização do produto.

À medida em que as reações adversas a medicamentos se tornam mais conhecidas, se potencializa o uso racional de medicamentos, garantindo que sejam usados de forma cada vez mais segura e eficaz. A detecção dessas reações depende diretamente da mobilização de dos atores envolvidos com o medicamento, incluindo fabricantes, profissionais da saúde, hospitais, universidades, agências regulatórias e consumidores finais.

Pela sua proximidade com os pacientes, os profissionais de saúde são os mais aptos a identificar precocemente algum indício de RAM, mas a detecção de reações adversas a medicamentos exige conhecimento e treinamento específicos para não serem confundidas com outros fatores que podem desencadear eventos adversos.

O fato de se observar uma reação adversa durante o uso de um medicamento ou logo após sua utilização não quer dizer que o efeito é realmente provocado pelo medicamento. O primeiro passo para estabelecer uma relação de causa-efeito é distinguir o que pode ser uma reação adversas a medicamento do próprio agravamento da doença de base. O emprego de algoritmos ajudará a verificar qual é a probabilidade do evento adverso ter sido causado por determinado medicamento.

Como definir uma relação de causalidade?

A tomada de decisões e a adoção de medidas cabíveis perante o evento adverso dependerão da consistência da relação de causalidade, da gravidade da RAM observada, do volume de notificações e do número potencial de pessoas atingidas. Algumas reações são tão graves que podem resultar até em suspensão da comercialização do medicamento no país, mas nem toda RAM demanda alguma ação em nível local ou nacional, algumas requerem apenas observação.

Um dos algoritmos mais utilizados para estabelecer causalidade é aquele desenvolvido por Naranjo (Quadro 1), composto por dez perguntas objetivas, com duas opções de resposta (sim ou não). Cada resposta para a reação investigada representa uma determinada pontuação que, ao final resultará em um escore que define a sua probabilidade de ter sido provocada ou não por determinado medicamento (Quadro 2).

tabela algoritmo de naranjo

faixa de valores obtidos com a aplicação do algoritmo de Naranjo

O Papel do Núcleo de Segurança do Paciente

No dia a dia, muitos profissionais de saúde podem considerar o processo de notificação de reações adversas burocrático e moroso, desviando-os de sua tarefa principal. É preciso uma sistematização do trabalho de farmacovigilância para garantir que seja bem sucedido. De acordo com a Resolução da Diretoria Colegiada da nº 36/2013 da Anvisa, os serviços de saúde devem constituir um Núcleo de Segurança do Paciente (NSP). Compete a essa equipe multidisciplinar a realização das ações de farmacovigilância, bem como a notificação de eventos adversos por meio do sistema eletrônico da Anvisa (Vigimed). Para o sucesso efetivo de suas ações, o NSP não deve depender apenas de notificações espontâneas da equipe de saúde, mas sim promover a busca ativa de RAM, o que possibilitará intervir precocemente e minimizar possíveis danos ao paciente.

O Uso da Ferramenta Trigger Tools

Mesmo para uma equipe treinada é impossível detectar e analisar todas as ocorrências, sendo necessário concentrar as ações de farmacovigilância nas RAM mais frequentes e, sobretudo, daquelas mais graves, que podem desencadear sequelas ou mortes. Uma forma de se fazer isso é através do uso da metodologia trigger tools, desenvolvida pelo Institute of Healthcare Improvement – IHI (Quadro 3). Os trigger tools nada mais são do que “gatilhos” ou pistas para identificar de modo retrospectivo a ocorrência de eventos adversos que provocaram algum dano ao paciente.

quadro de Gatilhos do Módulo de Medicamentos

Vivências Práticas

Monitorar todos os gatilhos propostos pelo IHI se revela extremamente complexo, cabendo a cada instituição definir os triggers mais relevantes. O Núcleo de Segurança do Paciente poderá, com base na realidade de sua instituição, definir os melhores gatilhos para busca ativa de reações adversas a medicamentos. A seguir, apresentamos alguns exemplos de rastreadores que podem ser adotados para as ações de farmacovigilância, dependendo dos serviços oferecidos pela organização e, consequentemente, do perfil de consumo de medicamentos.

Sangramentos

A varfarina é uma opção terapêutica bastante e efetiva na prevenção e profilaxia de eventos tromboembólicos, mas sua ação pode ser afetada por uma série de fatores, incluindo o uso de outros medicamentos e até a própria alimentação. Uma dose insuficiente de varfarina pode provocar trombose venosa profunda, embolia pulmonar e infarto agudo do miocárdio, que é justamente aquilo que se quer prevenir.

Já uma sobredose pode desencadear hemorragias, que variam desde pequenos sangramentos de fácil controle até hemorragias intracranianas potencialmente fatais. A monitorização laboratorial pode ser realizada por meio do RNI, exame de sangue que reflete o tempo de coagulação sanguínea.

A realização periódica desse exame permite realizar ajustes de dose para manter o medicamento efetivo e, ao mesmo tempo, evitar seus graves efeitos adversos. A forma mais efetiva de controle inclui também a educação do paciente e/ou seu cuidador, orientando-os para a detecção precoce de sinais de sangramentos.

O RNI neste caso, serve de gatilho, apontando rapidamente pacientes que demandam ajuste de dose de varfarina tanto em nível ambulatorial, quanto em regime de internação. A Vitamina K é usada como antídoto para reversão de hemorragias provocadas por intoxicação por varfarina e o seu consumo também serve de gatilho para busca ativa de possíveis RAM relacionadas à varfarina em pacientes hospitalizados.

Antialérgicos

O IHI aponta a difenidramina como indicador de alergias, mas a hidrocortisona e a dexclorfeniramina também são comumente utilizados para tratar reações de hipersensibilidade podendo servir de gatilho. Quando esses medicamentos são prescritos num Pronto Socorro ou Unidade de Pronto Atendimento, o Núcleo de Segurança do Paciente deve procurar por sinais e sintomas de hipersensibilidade a medicamentos ou outras substâncias potencialmente alergênicas que o paciente possa estar utilizando.

Sedativos e analgésicos

Nas Unidades de Cuidado Intensivo e nos Centros Cirúrgicos, é importante estar atento aos níveis de sedação e analgesia. Flumazenil e naloxona são utilizados como antídotos para combater o efeito de agentes benzodiazepínicos e opióides, respectivamente. A exacerbação do efeito destas drogas psicoativas pode rebaixar o nível de consciência em patamares perigosos, podendo provocar uma parada cardiorrespiratória. Assim, o consumo desses antídotos serve de gatilho para iniciar a investigação de possíveis RAM decorrentes da utilização de medicamentos como o midazolam ou a fentanila.

Hipoglicemias

A manutenção de níveis glicêmicos ideais em pacientes diabéticos é um enorme desafio, sujeito à várias interferências presentes no dia a dia – alimentação, atividade física e até o nível de estresse. Pacientes insulino-dependentes precisam ser acompanhados de perto, pois estão sujeitos a quadros de hipoglicemia que podem variar desde o ligeiro mal estar até o coma. Geralmente, o quadro hipoglicêmico é rapidamente revertido mediante a introdução de solução de glicose 50%. Desse modo, a administração de glicose pode ser um gatilho para rastreamento de hipoglicemia desencadeada pela insulina em pacientes hospitalizados. Para os pacientes sob acompanhamento ambulatorial, é fundamental que o paciente e/ou seu cuidador sejam orientados para detecção precoce de sinais de hipoglicemia, tais como tonturas e calafrios.

Uso de medicamentos off label no tratamento da Covid-19

Por último, fazemos também um alerta para o monitoramento de reações adversas a medicamentos que estão sendo usados no tratamento da Covid-19 como é o caso da hidroxicloroquina e da cloroquina. Estes medicamentos já são comercializados há bastante tempo para o tratamento de doenças reumáticas e malária.

Até o presente momento ainda não existem tratamentos ou vacinas licenciados para a Covid-19. O uso dessas drogas no combate ao novo coronavírus por curtos períodos tem se baseado nos resultados dos poucos estudos disponíveis o momento. Serão necessárias mais pesquisas, pois os dados atuais são insuficientes para atestar a segurança e eficácia dessa nova indicação.

Quando um medicamento é utilizado para uma indicação que ainda não foi homologada, chamamos essa situação excepcional de uso off label, ou seja, em desacordo com a bula do produto.

No contexto do manejo da pandemia, pacientes em uso de hidroxicloroquina e cloroquina para tratar de Covid-19 devem ser monitorados de perto, avaliando-se de forma contínua o aparecimento de reações adversas. O foco principal devem ser as reações mais graves, tais como alterações da função renal e da função hepática e alterações da função cardíaca. Além disso, existem interações com outros medicamentos que podem potencializar ainda mais os efeitos adversos dessas drogas.

Um exemplo de gatilho importante para as ações de farmacovigilância relacionadas ao uso desses fármacos é o prolongamento do intervalo QT no Eletrocardiograma. Essa alteração predispõe o indivíduo à taquicardia ventricular e aumenta o risco de morte súbita.

E você, já definiu trigger tools para realizar a farmacovigilância na sua instituição?

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Márcia Rodriguez Vásquez Pauferro

Farmacêutica Hospitalar

Farmacêutica formada pela USP, especialista em Farmácia Hospitalar e Qualidade e Segurança no Cuidado ao Paciente, Mestre em Bioética.