A expressão off label refere-se ao uso de medicamentos em condições diversas daquelas que constam na bula do produto. Tais situações incluem faixas etárias, vias de administração, posologias e indicações diferentes daquelas aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
O uso racional de medicamentos parte do princípio de que a população deve ter acesso a substâncias comprovadamente seguras e eficazes. Portanto, é feito com base em evidências científicas robustas, que respaldam a aprovação junto aos órgãos de regulação sanitária.
Dessa maneira, o ideal é não utilizar medicamentos em desacordo com a bula. Entretanto, para certas condições de saúde, faltam opções eficazes. É nesse cenário que o uso off label se apresenta, muitas vezes, como única alternativa de tratamento.
Estimativas apontam uso off label em mais de 90% das prescrições para pediatria e cerca de 7,5% a 40% para adultos. Os riscos dessa prática precisam ser cuidadosamente ponderados para que o médico não prejudique aquele cuja saúde deve proteger.
Nesta matéria, vamos refletir sobre situações em que o uso off label é aceitável. Também apontaremos alguns cuidados a serem adotados para garantir um balanço de risco-benefício a favor da segurança do paciente.
Situações de escassez de produtos aprovados pela regulação sanitária
Em algumas situações específicas, não há produtos aprovados pela regulação sanitária e disponibilizados no mercado. A escassez de produtos regularizados pode ocorrer por duas razões:
- Falta de evidências científicas robustas (o produto não foi submetido a ensaios clínicos controlados suficientes para obter resultados estatisticamente e metodologicamente significativos).
- O fabricante não tem interesse em comercializar o produto (mesmo com evidências favoráveis) e, portanto, não submete o pedido de aprovação à agência reguladora.
No primeiro caso, estamos falando de populações mais suscetíveis, incluindo gestantes, idosos e crianças. Pesquisas nesse público precisam cumprir exigências adicionais para sua proteção, porém isso tem como consequência menos medicamentos sendo testados e aprovados para esses grupos.
Com as chamadas doenças raras, as oportunidades de pesquisa são igualmente escassas. Consequentemente, o volume de evidências científicas é pequeno, limitado a alguns relatos de casos.
Adicionalmente, muitas indicações off label tendem a ser aprovadas pela regulação sanitária, assim que reunirem evidências científicas suficientes. Em outros casos, porém a aprovação se restringe a alguns países ou nem chega a ocorrer por razões puramente comerciais.
A segunda situação em que há escassez de produtos validados pela regulação sanitária é justamente a falta de interesse comercial. Afinal, pesquisas demandam tempo e investimento e a tendência é investir em produtos nos quais se vislumbre retorno significativo.
Inclusive, esse é mais um aspecto desfavorável das doenças raras, pois o público-alvo é pequeno e o retorno também. Sem políticas públicas de incentivo, a tendência é que os tratamentos sejam tão raros quanto as próprias doenças desses grupos minoritários.
O uso de medicamento off label na prática
O uso de qualquer medicamento apresenta riscos. No entanto, a escassa fundamentação científica que caracteriza os medicamentos off label exige precauções ainda maiores do que a rotina. O paciente também precisa estar ciente que há um risco maior envolvido.
Na assistência à saúde, a regra de ouro é adotar tratamentos comprovadamente seguros e eficazes. Entretanto, diante da indisponibilidade de produtos aprovados pela regulação sanitária, recorre-se ao medicamento off label.
Desse modo, o uso destes medicamentos é sempre uma exceção à regra e, como tal, deve restringir-se a situações específicas e contar com cuidados adicionais.
Protocolos institucionais
Nesse contexto, recomenda-se a elaboração de protocolos institucionais para respaldar o uso off label. As Comissões de Farmácia e Terapêutica e o Núcleo de Segurança do Paciente devem estar envolvidos na busca de um balanço favorável de risco-benefício.
Usar medicamentos não aprovados pela regulação sanitária não necessariamente é inadequado, mas requer fundamentação. Assim, o protocolo para uso off label deve se basear nos poucos estudos já realizados, em relatos clínicos, ou ainda, utilizar analogia com condições assemelhadas.
O protocolo institucional deve contemplar as medidas para controle e monitoramento dos possíveis riscos associados à prática e os critérios de inclusão/exclusão de pacientes. Esse documento preconiza também que todo o processo decisório seja registrado no prontuário do paciente.
É importante, ainda, esclarecer o paciente sobre possíveis riscos e benefícios de utilizar terapia não aprovada pela regulação sanitária. Essa informação deve ser documentada em um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme modelo previamente definido em protocolo.
A seguir, confira dois exemplos práticos de utilização de medicamentos fora dos critérios da regulação sanitária.
Alívio de sintomas em cuidados paliativos
Em cuidados paliativos, a oferta de medicamentos aprovados pela regulação sanitária para controlar sintomas é escassa. Além de não ser um investimento atrativo, existe grande dificuldade para realização de ensaios clínicos em pacientes tão instáveis e fragilizados.
Por outro lado, existem vários relatos de experiências bem sucedidas. Essas evidências têm contribuído para a definição de protocolos que podem melhorar significativamente a qualidade de vida, sobretudo nos estágios mais avançados de doenças incuráveis e incapacitantes.
Um exemplo sem regulação sanitária é a utilização de dexametasona para tratar a dor no câncer avançado. Esse corticoide também tem demonstrado bons resultados no controle de náuseas, obstrução intestinal e até para combater a falta de apetite.
Outro caso de sucesso é o uso da via subcutânea para administrar medicamentos que não contemplam essa via na bula. Trata-se de uma opção indolor e fácil de ser aplicada em pacientes muito debilitados ou confusos, com dificuldades para engolir.
A SBGG (Sociedade Brasileira de Geronto Geriatria) e a ANCP (Associação Nacional de Cuidados Paliativos) produziram um guia com as melhores evidências em terapia subcutânea. O guia inclui uma lista de drogas, com as respectivas precauções a serem adotadas.
Canabidiol para epilepsia refratária em crianças e adolescentes
Adicionalmente, citamos o uso canabidiol, substância extraída da maconha, para o tratamento de epilepsias refratárias às terapias convencionais em crianças e adolescentes. Nesse caso, o Conselho Federal de Medicina (CFM) autoriza sua prescrição, desde que sejam atendidas certas condições.
Uma das exigências do CFM é que os pacientes ou seus responsáveis legais sejam esclarecidos pelo médico sobre os possíveis riscos e benefícios e assinem um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Além disso, os pacientes precisam ser acompanhados e os efeitos colaterais reportados ao CFM.
Custeio dos tratamentos: como fica no caso do uso off label?
A escassez de recursos exige seleção bastante criteriosa do que será financiado, com base na eficácia, segurança e custo-efetividade das alternativas. Assim, custar tratamentos não aprovados pela regulação sanitária é assunto controverso, tanto nos serviços públicos, quanto privados de saúde.
Nesse contexto, seguradoras têm contestado o pagamento de tratamentos que fogem das recomendações descritas em bula. Entretanto, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) tem sido favorável ao direito do paciente receber a terapia prescrita pelo médico.
Segundo o STJ, o tratamento não pode ser negado apenas porque contraria as indicações da bula. Por outro lado, a prescrição off label pode comprometer a segurança do paciente e, em alguns casos, a sustentabilidade econômica do sistema de saúde.
Em suma, alguns pedidos fogem do razoável, envolvendo drogas extremamente caras, com escassas evidências que justifiquem sua utilização. O ideal é fomentar o diálogo entre as partes, procurando encontrar consensos entre gestores, profissionais de saúde e pacientes.
Uso de medicamentos off label durante a pandemia
O uso de medicamento off label ganhou notoriedade quando surgiu a expectativa de que medicamentos já comercializados para outras indicações pudessem ser eficazes no combate à COVID-19. Dentre eles, a hidroxicloroquina e a ivermectina produziram grande repercussão.
As evidências de benefício com hidroxicloroquina foram inconclusivas e vários pacientes apresentaram efeitos colaterais graves. Portanto, a indicação de hidroxicloroquina como antiviral contra o coronavírus não passou pelo crivo da regulação sanitária, nem foi recomendada pela Organização Mundial da Saúde
Com relação à ivermectina, ainda existem estudos em andamento, mas o uso como antiviral não está aprovado por nenhuma agência regulatória do mundo. O Food and Drug Administration (FDA) defende que ainda não existem evidências suficientes para validar essa droga.
Portanto, mesmo diante de situações alarmantes, a segurança dos pacientes vem em primeiro lugar. Protocolos institucionais para abordar pacientes com COVID-19 devem ser definidos e revisados constantemente, com base nos resultados das pesquisas mais recentes e promissoras.
As implicações e responsabilidades do uso off label
A regulação sanitária é uma forma do Estado zelar pela saúde da população. Igualmente, o CFM preconiza o compromisso médico em utilizar métodos seguros e eficazes nos pacientes, mas reconhece o direito de prescrever terapias alternativas, quando esgotadas opções convencionais.
O direito de, excepcionalmente, recorrer aos tratamentos off label também é reconhecido pela Associação Médica Mundial. Por outro lado, Anvisa e CFM ressaltam que isso não isenta o profissional de responder pelo eventual insucesso, podendo até caracterizar erro médico.
Por fim, convém distinguir o uso off label da pesquisa clínica, sujeita a regulamentação própria. Dentre outras exigências, a pesquisa demanda: obtenção do consentimento dos participantes, compromisso em minimizar os riscos e garantia de indenização em caso de danos.
Existem demandas off label na instituição em que você trabalha? Reúna a equipe e providencie protocolos para garantir a segurança dos pacientes!
Agora, se você quiser saber mais sobre a pesquisa clínica, recomendamos que leia também a matéria Desenvolvimento de novos medicamentos: o caminho desde a pesquisa até a prateleira.